TELETRABALHO DÁ FORÇA AO "VIVER NO INTERIOR"

O atual contexto impulsionou o trabalho remoto e o interior do país está a cativar quem pode optar por esta forma de emprego. Mas, “nem tudo são rosas”. Mudar de uma grande cidade para uma aldeia no interior do país, nem sempre corresponde à visão edílica muitas vezes espelhada na comunicação social. Em conversa com a iNature, Frederico Lucas, coordenador do Programa Novos Povoadores, aborda as diferenças entre o atual ciclo de migração e o sucedido em 2009, os desafios da integração numa comunidade rural e os caminhos para uma mudança bem-sucedida. "A migração não pode ser uma fuga para a frente", defende. Com uma vasta experiência em consultoria de migração, o responsável fala também sobre o que pode ser feito para atrair e melhorar o enraizamento dos "novos povoadores" e dos projetos que está a desenvolver para captar profissionais nómadas e combater o despovoamento do interior do país.

Que efeito está a ter o atual contexto na migração de pessoas para o interior?
Está a ter um efeito benéfico, porque o facto de muitas empresas terem permitido o teletrabalho, precipitou a migração de muitas famílias.

Há a sensação que cada vez que há uma crise verifica-se um “boom” na migração para o interior. As crises despoletam a vontade de sair das cidades?
Há mais migração durante as crises porque as pessoas têm no seu subconsciente que o interior é o seu “porto seguro”. As pessoas, ou porque ficam desempregadas ou porque se divorciaram, têm o instinto de regressar à sua terra ou à terra dos pais, quando estamos a falar de segundas gerações.

Essa visão de “porto seguro” é muitas vezes associada a uma ideia edílica, mas não é bem assim. Ou é?
Em 2009, 90% das pessoas que migraram para o interior acabaram por regressar à cidade assim que recuperaram as suas condições económicas, mas agora não é assim. Na altura até se utilizava a etiqueta “refugiado económico”, porque, de facto, as pessoas migraram para o interior porque tinham ficado sem os rendimentos que lhes permitiam viver em Lisboa. Agora não é assim, até porque entre as mais de três mil pessoas que recorreram a nós, não temos nenhuma que esteja a repetir o processo de migração.

Agora vai haver uma menor taxa de regresso à cidade?
Sim, não tenho dúvida.

"Em 2009, 90% das pessoas que migraram para o interior acabaram por regressar à cidade
assim que recuperaram as suas condições económicas, mas agora não é assim".

O que é que mudou, entretanto?
As pessoas agora migram com emprego. Não são pessoas como as de 2009 em que a sua única fonte de receita era o subsídio de desemprego. Agora são pessoas que levam o emprego para a aldeia e trabalham a partir de casa. A possibilidade de teletrabalhar veio ajudar muito a migração.

Ser empreendedor é importante para quem escolhe migrar para o interior?
Há duas características importantes para quem envereda por um processo migratório. Uma delas é o espírito empreendedor e a capacidade de se adaptar a uma nova forma de trabalhar. A outra é a capacidade de se integrar. 

O que é preciso para ter uma boa integração?
É muito raro haver boas integrações. Eu diria que 99,9% dos nossos casos são problemáticos em termos de integração. Conto pelos dedos das mãos as integrações que funcionaram bem desde o início da instalação dos migrantes.

Porquê?
Porque, ao contrário da população urbana, a população rural tem um conceito de comunidade e não é qualquer pessoa estranha que entra nessa comunidade. Nos meios rurais, as pessoas vivem numa comunidade equilibrada e a chegada de uma pessoa nova tende a desequilibrar essa comunidade. Por exemplo, nas aldeias é frequente existir um senhor que é o mecânico local, que arranja os automóveis, os tratores e as máquinas em geral. Se aparecer alguém “novo”, sabido em mecânica, que desminta o conhecimento do especialista local, põe em causa esse equilíbrio. Isto aplica-se a tudo. Dizer aos locais que tal não é ou não se faz assim, mas sim como eu digo porque eu sei como é porque estudei mais, gera atritos e desequilíbrios.

Há locais de maior e menor dificuldade de integração?
Do Alentejo para Trás-os-Montes há realidades muito diferentes. No Alentejo, o espaço privado de uma pessoa é o “café central”, é a sua sala de visitas, enquanto em Trás-os-Montes é a sua casa. Logo, é muito fácil entrar no “café central” falar com as pessoas e ficar com a impressão que se ganhou a confiança das pessoas e que se está integrado. É normal termos contactos de pessoas que após uma semana no Alentejo nos dizem que estão perfeitamente integrados. Em Trás-os-Montes, não há o “café central”, o espaço privado das pessoas é a sua casa, e a comunicação é muito frontal. É normal ouvir um “vai para a tua terra!” à mínima desavença ou discórdia, algo que não acontece no Alentejo. Talvez por isso, a expressão que mais nos chega das pessoas que migram para Trás-os-Montes depois de estarem lá há uma semana é “isto vai ser muito difícil”.

"A taxa de sucesso na região do Douro é das mais elevadas.
Cerca de 80% da nossa taxa de insucesso tem origem no Alentejo."

E qual é a perceção correta?
São as duas erradas. Passado um ano, a família do Alentejo não se integrou, nem vai ser integrada. E a família que está em Trás-os-Montes continua a ser forasteira – as pessoas de Lisboa ou do Porto -, mas são agregados pela comunidade.

A taxa de sucesso de integração é maior a norte?
Sim, a taxa de sucesso na região do Douro é das mais elevadas. Cerca de 80% da nossa taxa de insucesso, de desistências, são no Alentejo. O rio Tejo é uma fronteira clara, o que acontece em Portalegre é diferente do que acontece no Fundão.  

Há alguma explicação para tais diferenças?
Alguns sociólogos apontam a distância das casas como um dos fatores. No Alentejo, as casas são dispersas enquanto em Trás-os-Montes, a proximidade das casas é maior. O portão de uma casa é ao lado do da casa do vizinho, o que obriga a uma interação a uma comunicação com o vizinho, ouve-se as conversas dos vizinhos, etc. Existe uma relação entre a proximidade das casas e integração. No Alentejo, uma pessoa que compra um monte e vai à vila para se abastecer nunca será integrada, seja em Montemor-o-Novo seja em Santiago do Cacém. Num caso destes, não há qualquer hipótese de integração. Depois, haverá também um contexto histórico, porque o passado diz-nos que no Alentejo não há uma boa experiência com os forasteiros.

Os Municípios e as Juntas de Freguesia têm ou poderiam ter algum papel nessa integração?
Eu vou ser político na resposta que vou dar. Quem pode ajudar na integração junto da comunidade são as Juntas de Freguesia, mas estas estão desprovidas de poder. Há hoje uma enorme concentração de poder nos Municípios e zero poder nas Juntas de Freguesia. É por isso que defendo uma descentralização que dê poder às Juntas de Freguesia, para que estas possam atuar ao nível da integração. Caso contrário, será muito difícil porque os Municípios não têm vocação para fazer esse trabalho e têm milhentas outras coisas para fazer.

Têm sido criados alguns programas para incentivar a migração de pessoas para o interior. Qual é a apreciação que faz destas medidas?
Estamos ainda longe do "sítio", mas tem-se vindo a caminhar na direção certa. Dantes existiam os programas de coesão territorial que despejavam dinheiro no território, mas os efeitos práticos na população eram nulos, porque havia um conjunto de famílias com património e rendimento que aspiravam esses recursos públicos e europeus. Parece-me que, com a criação do Ministério da Coesão, onde eu até nunca depositei muita esperança, tem vindo a ser feito um trabalho melhor e têm sido desenvolvidas algumas iniciativas acertadas.

Pode dar algum exemplo?
O programa +CO3SO. Conheço vários casos de pessoas que conseguiram instalar-se em zonas muito despovoadas com recurso a este programa, levando consigo o seu know-how, ou seja, pessoas que continuaram a fazer o que faziam na cidade, mas que passaram a fazê-lo em Mêda ou numa aldeia qualquer. Isto porque é muito diferente migrar para abrir um turismo rural tendo zero experiência no assunto de ser produtor de televisão, trabalhar para uma RTP, e continuar a sê-lo, mas em Seia. Isto é importante porque as oportunidades que existem nos meios rurais, nem sempre estão alinhadas com as competências das pessoas que pretendem migrar.

E a aposta de alguns municípios em atrair empresas que, por sua vez, atraiam e fixem pessoas no concelho?
As estratégias que conheço devem estar a ter resultados porque estão a ser implementadas, mas se a pergunta é se eu acredito nelas, a resposta é não.

"Temos que colocar as nossas 'fichas' onde somos bons, 
na castanha, na cereja, nos queijos, no azeite e na cortiça, entre outros, 
e aumentar o valor destas cadeias. Isto não é nada de novo".

Porquê?
É uma estratégia errada na medida em que não aproveita os recursos e o contexto locais. Por exemplo, a Burel Factory, em Manteigas, não irá para outro lugar porque é ali que existe o know-how, a lã, as máquinas. O mesmo se passa no Luxemburgo com a indústria financeira e com a indústria da transformação da castanha na zona de Ardèche, em França. Quando não é incorporado nada do território na estratégia do negócio de uma empresa, não há motivos para acreditar que a estratégia seja sustentável.

Então o que deve ser feito para desenvolver o território no interior?
Eu não tenho nada para dizer que não esteja à frente dos olhos de toda a gente. A castanha: faz sentido estarmos a vender a castanha em bruto, quando ela transformada aumenta 20 vezes o seu valor? Quando compramos uma caixa de 200 gramas de creme de castanha por 15 euros num supermercado, quanto é que foi para o nosso produtor de Trás-os-Montes que vendeu a matéria-prima? Um, dois por cento? Volto a sublinhar o caso da Burel Factory que transforma a lã em produtos de elevado valor acrescentado. Temos que desenvolver mais áreas de negócio com este modelo. Temos que perceber as vocações dos nossos territórios e há vários relatórios que já fizeram esse diagnóstico. Temos que colocar as nossas “fichas” onde somos bons, na castanha, na cereja, nos queijos, no azeite, na cortiça, entre outros, e aumentar o valor destas cadeias. Isto não é nada de novo.

 

MIGRAÇÃO PARA O INTERIOR DEVE SER PREPARADA

Como é que o Programa Novos Povoadores ajuda as pessoas a migrarem. Pode descrever o processo?
Começamos por fazer uma análise do perfil do candidato. Qual é a história das pessoas, quais as valências, qual o negócio que pretendem instalar no local para onde desejam migrar e se faz sentido criá-lo ali.

Pensam sempre numa mudança associada a um projeto de empreendedorismo?
Sim, sempre. Uma pessoa que migre de Lisboa para Góis, por exemplo, porque vai trabalhar numa empresa local, não é um “novo povoador”, é um migrante que tem o direito legítimo de ir para onde deseja, mas o impacto é diferente. Um migrante destes não é estratégico em termos de desenvolvimento local, enquanto alguém que migre para criar o seu negócio, o seu posto de trabalho e outros, eventualmente, vai acrescentar valor à região.

Mas, voltando à vossa análise...
Depois do perfil avaliamos o negócio que os candidatos pretendem desenvolver. Caso o perfil não encaixe no negócio ou este não seja adequado à região, como não podemos mudar o perfil, tentamos mudar o negócio.

Pode descrever o processo do Samuel e da Marta, da Beir’Aja?
Foi um processo que começou dois ou três anos antes da migração, algo que os migrantes devem fazer. Preparar o processo migratório com anos de antecedência reduz o risco de insucesso. O processo do Samuel e da Marta ainda pode correr mal, como qualquer outro, mas a probabilidade é menor. O trabalho que foi feito com eles passou pelo levantamento das competências deles e cruzá-las com as necessidades daquele território e, a partir daí, aconselhar na construção de um projeto para testar naquela região com uma reduzida taxa de insucesso. Eles começaram por pensar em criar um alojamento local e após estudo e ponderação conclui-se que o melhor para eles e para o território seria criar um serviço de animação turística.

"Das mais de três mil famílias apoiadas pelo programa,
500 concretizaram o processo de migração e, destas, cerca de 50 acabaram por regressar à origem.
As restantes foram desaconselhadas a migrar".

Quantas pessoas ou famílias já recorreram ao Programa Novos Povoadores?
Já ultrapassamos a marca das três mil famílias, mas nem todas avançaram com o processo de migração.

Qual é a taxa de sucesso, de enraizamento?
Do total, 15% migraram com sucesso e o número das que regressaram foi inferior a 10%. Ou seja, migraram cerca de 500 famílias e 50 – 10% - acabaram por regressar ao ponto de origem, desistiram. As restantes foram desaconselhadas a não migrar.

Porquê?
Muitas pessoas que enveredam por um processo de migração, fazem-no numa lógica de “fuga para a frente”, porque perderam o emprego ou têm uma ordem de despejo na casa, e apostam na migração sem que existam competências que deem origem a um processo de migração bem-sucedido.
Nestes casos, o que dizemos às pessoas é que os problemas que têm no seu local de origem não vão desaparecer porque vão migrar para o interior. Nós temos muito cuidado nestes processos e uma das coisas que fazemos é entrevistar os dois membros do casal e, muitas vezes, verificamos que não há um projeto conjunto, de família. Se a resposta individual à mesma pergunta for muito diferente, é sinal de que não existe uma reflexão conjunta sobre o processo migratório.

Entre os que regressaram, qual foi o fator predominante de insucesso?
As dificuldades de integração. Mesmo nos que ficam, a integração é a maior dificuldade. Depois da integração, é a falta de trabalho. Ou seja, quando as pessoas não encontraram uma solução de emprego de acordo com as suas qualificações.

Isso vai ao encontro de muitos estudos que indicam a falta de emprego como o fator principal para o despovoamento do interior.
Mas a pandemia e o atual contexto podem vir a mudar essa realidade. Isto, porque os empresários das pequenas e microempresas estão a olhar para o teletrabalho de maneira diferente. A importância que o empresário dá ao trabalho presencial está a mudar por força da pandemia. Hoje, há a possibilidade de as pessoas migrarem e levarem o seu emprego com elas. Esta é a grande novidade da pandemia. Repare, em 2009, eu cheguei a visitar uma família no Caramulo que era um caso de estudo porque um dos membros trabalhava para a Microsoft. Isto hoje é banal no país inteiro. Só entre Coimbra e o Caramulo, eu conheço mais de cem pessoas em trabalho remoto.

"Queremos reconverter espaços em aldeias despovoadas em locais de trabalho".

Sei que há novos projetos na forja. Pode adiantar alguma coisa?
Sim, temos dois. O primeiro é as e-Villages, que consiste em criar condições em vilas ou aldeias para onde as pessoas possam ir trabalhar. Isto porque é necessário diferenciar o teletrabalho do trabalho a partir de casa. O trabalho a partir de casa não é uma boa solução, porque as pessoas em casa têm uma série de distrações que prejudicam o trabalho. Nós acreditamos no trabalho remoto, mas não necessariamente a partir de casa. Acredito que algumas das 500 mil edificações desclassificadas existentes em muitas aldeias possam ser reabilitadas para receber pessoas que ali queiram trabalhar.

Tem semelhanças com os espaços de cowork, não?
Tem um princípio semelhante, mas os cowork pressupõem que as pessoas que estão nesse espaço interajam e desenvolvam projetos entre si, há uma filosofia de trabalho em conjunto. No caso das e-Villages estamos a falar de pessoas que trabalham para organizações diferentes e só para essas, sem envolver parcerias com o "vizinho do lado". Queremos reconverter espaços em aldeias despovoadas em locais de trabalho.

Inverter o habitual circuito de viver na aldeia e trabalhar na cidade?
Sim. As pessoas querem viver em locais onde existam farmácias, lojas e serviços, e isto não existe nas aldeias. Logo, uma solução que nos parece vir a fazer parte do modelo de desenvolvimento do futuro é as pessoas viverem nas cidades e trabalharem nas aldeias. As cidades continuarem a ser os dormitórios e as aldeias os locais de trabalho. As pessoas vão continuar a viver nas cidades porque é aí que têm os serviços que precisam, mas o seu escritório não estará no centro dessas cidades, mas sim numa aldeia que estava desabitada e onde foram criadas condições para se poder trabalhar remotamente.

Já há projetos em desenvolvimento?
Não posso adiantar muito, mas posso dar o exemplo da freguesia do Furadouro, em Coimbra, que foi considerada recentemente uma zona de trabalho remoto e é provável que se torne num exemplo a seguir. É um projeto que estava parado, mas que a pandemia veio acordar. É engraçado, a pandemia veio atrasar alguns projetos, mas também acelerar alguns que estavam adormecidos.

"Estamos a apontar para a criação de soluções de habitação
com um custo inferior a 20 mil euros".

E qual é o outro?
O outro está relacionado com casas móveis e modulares. É um projeto relacionado com habitação, que me parece ser um dos desafios da década, e que pretende responder à ausência dos requisitos exigidos pelas pessoas para ir viver para as aldeias. Hoje, uma casa modular custa quase tanto como um apartamento numa cidade e nós queremos alterar isso. Estamos a apontar para a criação de soluções de habitação com um custo inferior a 20 mil euros. A ideia baseia-se num conceito norte-americano – tiny houses – e quer responder não só à questão do preço como da mobilidade, porque uma pessoa que está hoje a trabalhar em Portugal pode arranjar um emprego na Alemanha e com esta solução basta contratar uma empresa para transportar a sua habitação para qualquer lugar, na proximidade do seu novo emprego.

Já há empresas a oferecer esse tipo de soluções de habitação?
Sim, muitas. O próprio IKEA vai entrar no setor das casas pequenas e vai vender casas em kit. Eu julgo que este mercado vai crescer muito nos próximos anos devido aos trabalhadores nómadas e eu estou a apostar nele e em novos materiais de construção como a cortiça, que é um dos setores chave que já mencionei, e em que Portugal é muito bom.