VOUZELA:
NA ROTA DA SUSTENTABILIDADE

Inventariaram o património natural do concelho, criaram um Parque Natural com gestão local - o único do país com um modelo de gestão com essa tipologia - foram fustigados pelos incêndios de 2017 e pelas tempestades de 2019, mas nunca desistiram. Mais de uma década depois de iniciar uma rota rumo à sustentabilidade, Carlos Oliveira, vice-presidente da Câmara Municipal de Vouzela, e Leonor Alcoforado, Técnica de Turismo do Município, explicam os altos e baixos do caminho que o município traçou, da aposta no património natural e na economia da natureza, e dos frutos que começam agora surgir. Em dezembro, Vouzela sagrou-se o primeiro concelho do país com certificação internacional Biosphere Destination

Vouzela tem vindo a diferenciar-se como um destino de turismo sustentável. Quando é que definiram esta estratégia e porquê?
Carlos Oliveira (CO) – A estratégia já vem de longe, mas talvez possamos dizer que começa a ganhar tração em 2009, quando começamos a estudar o património natural de Vouzela, um trabalho que mais tarde viria a dar origem ao livro “Património Natural – árvores e florestas do concelho de Vouzela”. Foi também por esta altura que se começou a pensar na criação do Parque Natural Local Vouga-Caramulo, que seria constituído em 2015.

Leonor Alcoforado (LA) – O livro resultou de um trabalho do biólogo Paulo Pereira e do fotógrafo João Cosme, com o Centro de Ecologia da Universidade de Coimbra, e consiste no estudo de cerca de duas centenas de árvores do concelho (199). Isto não significa que não tínhamos já uma perceção da riqueza do património natural do concelho, já sabíamos que tínhamos árvores com mais de 700 anos. Infelizmente, algumas delas forma vítimas dos incêndios em 2017.

CO – Sim, a valorização do património natural já vinha de trás, porque já tínhamos a Reserva Botânica do Cambarinho, que por alterações legislativas precisava de tomar um novo rumo. Talvez isso também tenha contribuído para a definição do caminho a seguir.

"Constituir um Parque Natural tem sempre vantagens e desvantagens para os proprietários dos terrenos. As pessoas tinham medo de ser impedidas de fazer o que quisessem dos seus terrenos, pensavam que lhes iam retirar a propriedade, até se falou em expropriações, enfim", conta Carlos Oliveira.

O Parque Natural Local Vouga-Caramulo (PNLVC) é o único a nível nacional com um modelo de gestão local. Porque é que optaram por este modelo gestão?
CO – Porque é um modelo que permite uma maior proximidade das pessoas e mitigar a burocracia. Nós sabemos que a administração é burocrática por natureza e vimos neste modelo de gestão uma maneira de simplificar as coisas. Uma das premissas que temos é a rapidez de intervenção. Queremos ser facilitadores e não mais uma entidade criadora de entraves e obstáculos a quem queira investir e promover o nosso território.

Quantos hectares tem o Parque e qual o principal foco?
CO – São quase 12 mil, que correspondem a cerca de 60% do território do concelho. Parte da área são terrenos baldios, mas a maioria são propriedades privadas.

LA – O regulamento do Parque está muito focado na preservação do carvalhal, que foi muito afetado pelos incêndios, mas já está a recuperar. Temos árvores com várias centenas de anos, uma delas, um carvalho, em Alcofra, tem cerca de 400 anos. É uma árvore monumental. Felizmente, a recuperação já se nota em vários locais.

Este caminho rumo à sustentabilidade e ao turismo de natureza exige uma concertação de esforços de vários agentes. Foi fácil juntá-los em prol deste objetivo? Quais foram os grandes desafios que encontraram ao longo deste processo?
CO – O município definiu a estratégia de desenvolvimento para o concelho em termos económicos, sociais e o turismo de natureza foi um foco natural nesta estratégia. A criação do PNLVC não foi fácil porque encontrou muitas resistências. Eu e a Leonor fizemos várias sessões de esclarecimento pelo concelho, abordando as vantagens e os inconvenientes e, em algumas delas, posso dizer que quase fomos mal tratados.

Um caminho cheio de pedras

Que tipo de inconvenientes é que as pessoas mais apontavam?
CO – A introdução de animais como o lobo e o javali, por exemplo. Constituir um Parque Natural tem sempre vantagens e desvantagens para os proprietários dos terrenos. As pessoas tinham medo de ser impedidas de fazer o que quisessem dos seus terrenos, pensavam que lhes iam retirar a propriedade, até se falou em expropriações, enfim. Um projeto destes tem que ser feito para as pessoas e nunca contra as pessoas, mas assistiu-se a fenómenos complicados, houve pessoas a cortar carvalhais inteiros, com medo que depois não os deixassem fazer o que queriam daquelas árvores. Mas eu acho que o atrito deveu-se à muita contra-informação que ia surgindo. Além disso, vivia-se também uma época atribulada em termos políticos porque as eleições estavam à porta. Foi complicado, mas fomos perseverantes e resilientes e conseguimos levar o trabalho a “bom porto”.

LA – Eu acho que as vozes que na altura se ouviram foram as vozes que têm o prazer da oposição, que estão e gostam de estar sempre contra. Mas, se as pessoas estivessem realmente contra tinham saído à rua, como aconteceu noutros pontos do país em situações semelhantes. E eu nunca senti isso.

Leonor AlcoforadoPassados todos estes anos, qual é o balanço que fazem da constituição do Parque?
CO - É positivo, porque a estratégia e os objetivos do Parque, nesta lógica do turismo e da economia da natureza, da biodiversidade e do ambiente, estão a dar frutos. Dentro da estratégia de marketing territorial, temos conseguido afirmar o território, não só na região mas também fora dela, e isso tem contribuído para complementar o caminho que temos vindo a seguir no âmbito da sustentabilidade.
Todos os passos que temos vindo a dar seguem uma lógica. Por exemplo, nós fomos o primeiro concelho do país a substituir toda a iluminação pública total por iluminação led e somos o primeiro concelho do país a ter um plano de sustentabilidade turística aprovado com Certificação Internacional Biosphere. Podem ser pequenos passos, mas estão a produzir resultados.

LA – Às vezes andamos tão atrapalhados que nem sabemos bem o que andamos a fazer e parece que não fazemos nada, mas quando fazemos as checklists, na altura das auditorias, verificamos que há uma linha bem marcada. As caminhadas, o Festival de Fotografia da Natureza, o Centro de BTT, os projetos das galerias ripícolas, das áreas de lazer, está tudo novamente a ganhar foram, depois do que aconteceu em 2017, que foi um enorme “murro no estômago”.

Os incêndios de 2017 foram um forte revés nesta estratégia.
CO – Em 2017 ardeu quase 75% do concelho. Perdemos imenso património natural, construído e humano. Depois, quando já estávamos a recuperar dos incêndios, vieram as tempestades de 2019 que destruíram totalmente os rios e as zonas ribeirinhas. Nesse ano, só em infraestruturas públicas, os prejuízos ascenderam a mais de 7 milhões de euros.

E em termos de investimento turístico, a estratégia está a atrair novos empreendedores?
CO – Sim, claramente. Para dar um exemplo, em 2015, existiam pouco mais de meia dúzia de unidades de alojamento no concelho e agora temos quase 60.

LA – Mais. Estão a chegar os agentes que ainda não tínhamos no território, como as empresas de animação turística, o que permite a criação de produto. Dantes, as pessoas chegavam e não tinham o que fazer, e agora isso já não acontece. Além disso, começa a haver uma articulação entre os vários agentes do sector.

"As pessoas vêm cá 'a Vouzela', gostam e querem ficar. Há qualquer coisa no concelho, que até nós temos alguma dificuldade em compreender, mas as pessoas ficam encantadas e acabam por se fixar", diz Leonor Alcoforado.

E como é que os agentes do turismo vêm esta estratégia do município, do foco na sustentabilidade?
LA – Grande parte deste processo ou caminho para a sustentabilidade foi pôr as pessoas em contacto. A pandemia veio prejudicar um pouco este processo, mas as pessoas mostraram sempre interesse e foram sempre aparecendo. Fruto desse trabalho, temos já muitos alojamentos e restaurantes a entrar no processo de certificação e a tentar perceber a dinâmica, porque aqui o que interessa é que o restaurante compre ao produtor local, ou seja, que contribua para encurtar cadeias.

livro património natural de VouzelaHá novos investimentos a chegar ao concelho devido à estratégia traçada?
LA – Sim. Nós sentimos isso no turismo, porque dedicamos muito do nosso tempo ao serviço imobiliário (risos). As pessoas vêm cá, gostam e querem ficar. Há qualquer coisa no concelho, que até nós temos alguma dificuldade em compreender, mas as pessoas ficam encantadas e acabam por se fixar. Um exemplo recente é o caso de uma família que vendeu os negócios que tinha na área do alojamento local no Porto e criou em Fataunços o alojamento voupormontes. É alojamento com características muito particulares, muito virado para o bem-estar, ioga, permacultura, pintura, etc. Eles já tinham alojamento na zona de Vila Real, mas ao passar por ali, apaixonaram-se e adquiriram a habitação. E este é apenas um exemplo.
Este caminho culminou com a atribuição da certificação turística internacional Biosphere Destination em dezembro do ano passado, o que tornou Vouzela no primeiro concelho em Portugal com este selo.

Quais foram os grandes desafios para a obtenção desta certificação ou quais os requisitos mais difíceis de cumprir?
CO - É um processo evolutivo que compreende 17 objetivos e nós ainda não os cumprimos todos, vamos ter que o fazer ao longo dos próximos anos. Para já temos a certificação relativa a 2021 e agora temos que cumprir mais alguns durante este ano e nos anos seguintes.

Tem um caderno de encargos que têm que executar. É isso?
CO – Sim.

LA – O que deu origem à certificação foi a avaliação do que o município fez nos anos anteriores.

Observar, medir, monitorizar

Quais são os próximos grandes desafios?
LA – O nosso grande desafio é quantificar, daí a criação do Observatório para a Sustentabilidade. Temos grandes desafios em termos de contabilidade, porque a lei da contratação pública cria-nos muito bloqueio ao que nós achamos que é óbvio. Por exemplo, para cumprir as regras da contratação temos que abrir os concursos ao mercado e isso nem sempre significa ir ao encontro da sustentabilidade, porque muitas vezes temos que ir comprar ou contratar longe e isso aumenta a pegada ecológica.

CO – É nesse campo que estamos a trabalhar. Temos que desenhar melhores cadernos de encargos.

Qual é o objetivo do Observatório para a Sustentabilidade. É ter essa perceção?
CO – É medir, monitorizar e desenhar novas ações em função dos dados recolhidos. Nós temos a nossa perceção, mas podemos estar errados. Já temos alguns dados, mas vamos continuar a recolher para melhor definir os caminhos a fazer.

LA – O que temos agora a decorrer é dirigido aos turistas. Temos em alguns pontos onde, através de uma aplicação obtida através de códigos QR, disponibiliza um inquérito para as pessoas participarem. Queremos saber o perfil etário, o que procuram em termos de atividades, por exemplo. Mais tarde iremos ter outros pontos direcionados para os operadores, para os alojamentos e para a restauração, de forma a perceber se há ou não impacto no que estamos a fazer.

"Queremos saber o que procura quem nos visita agora e quem nos visita no verão. Eu acho que há diferenças de interesses, mas não sei. Posso estar enganada. E isso vai ser interessante de saber", diz Leonor Alcoforado.

Como é que fazem essa recolha de informação?
LA – Temos uma aplicação que é descarregada através dos códigos QR que estão nesses pontos. As pessoas descarregam, respondem ao inquérito e depois esses dados são encaminhados para o ISLA - Instituto Politécnico de Gestão e Tecnologia de Gaia, para serem tratados.

As pessoas têm participado?
LA - Sim, logo na primeira semana tivemos bastante adesão. E agora esperamos que o verão nos traga mais turistas e mais informação.

CO – Esta primeira fase é quase um piloto. Numa segunda iremos aumentar o número de pontos de recolha de informação a outros locais, aos alojamentos e aos restaurantes. Ou seja, vamos alargar a malha para que a amostra seja maior.

Quando é que estimam ter o primeiro relatório sobre os dados/informação recolhida?
CO – Ainda este ano. Queremos recolher informação das épocas baixa e alta para poder tirar mais e melhores conclusões.

LA – Queremos saber o que procura quem nos visita agora e quem nos visita no verão. Eu acho que há diferenças de interesses, mas não sei. Posso estar enganada. E isso vai ser interessante de saber.

insitu-festival de imagem de natureza de VouzelaNos próximos dias 6 a 8 de maio irá realizar-se a 11ª. edição do Festival de Imagem de Natureza de Vouzela. Quais são as vossas expectativas e o que pode esperar quem vier ao evento?
CO
 – Apesar de ser a 11ª edição, será uma edição nova, porque esteve parado um ano devido à pandemia e tem uma organização nova. Tem também um novo nome – antes chamava-se “cinclus” – melro de água – e agora chama-se “insitu”. Será um evento singular, que pretende mostrar a identidade do nosso território e que vai ao encontro da estratégia que temos estado aqui a falar.

É mais um passo no caminho da sustentabilidade.
CO - Sim. Queremos mostrar através da imagem e do vídeo o trabalho destes artistas – fotógrafos. Teremos 11 oradores, nove nacionais e dois internacionais. Procuramos sempre ter uma componente além-fronteiras. Vamos ter quatro exposições completamente diferentes, uma de um fotógrafo da terra, sobre o Parque Natural Local Vouga-Caramulo. Temos o concurso juvenil, cuja intenção é captar o interesse do publico mais jovem para estas temáticas. E será, certamente, um fim-de-semana único no país, onde será entregue o galardão de Fotógrafo de Natureza do Ano. Este ano temos quase duas mil fotografias a concurso.

LA – O concurso tem oito categorias e as fotografias podem ser de qualquer parte. De todas será selecionada uma que terá o prémio absoluto de Fotógrafo de Natureza do Ano.

Roteiro para um passeio de três dias pelo Parque Natural Local Vouga-Caramulo

Agora temos um desafio que propomos sempre aos nossos entrevistados. Se uma família vier passar três dias à região, o que é que tem de ver e fazer durante a sua estada?
LA – Começava por dedicar o primeiro dia à vila de Vouzela. Ver a Capela de São Frei Gil, o Museu Municipal e o centro histórico. E, se houvesse tempo durante o dia, uma visita à Nossa Senhora do Castelo e à Torre Medieval de Vilharigues ou à Torre Medieval de Cambra, onde existe um espaço verde muito agradável. À noite propunha fazer a Rota do Pastel de Vouzela, com as capinhas e as gambiarras, e uma paragem no Museu do Castelo de Vouzela que abriu no ano passado, na Casa das Ameias.

Na manhã do segundo dia faria um percurso pedestre. Proponho o PR7 – Rota das Poldras, em Fataunços, porque tem o rio, que proporciona um passeio muito agradável e exemplificativo do nosso património natural. Demora cerca de três horas. À tarde, e porque a manhã foi exigente fisicamente, propunha um piquenique na Lapa de Meruje, e uns momentos de descanso na barragem. Além do Dólmen, há ali um percurso muito pequeno, mas muito agradável. Por fim, à noite, ia até ao “Mickas Craft Beer” beber uma cerveja artesanal ou a Pinheiro de Lafões comer um petisco.

No último dia, iria para o lado de Alcofra passear pela zona da Torre Medieval, e depois ia comer uma sopa seca ou uma vitela na panela, e terminava com uma fatia de Pão-de-Ló de Alcofra.

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