Marta e Samuel trocaram Odivelas pelo Vale da Senhora da Póvoa e fundaram a Beir’aja. Conheça os primeiros capítulos de uma história de migração da cidade para os arredores da Serra da Malcata.
Não é necessária muita imaginação para compreender as diferenças entre os sons e os cheiros da Calçada de Carriche ou da estação de Metro de Odivelas, e os da pacata aldeia do Vale da Senhora da Póvoa, no concelho de Penamacor. E menos será, para entender as diferenças dos dois locais. Marta Cameira Simões, 36 anos, conhece-as bem. Sempre que as férias escolares começavam, Marta apanhava o autocarro de Lisboa para Vilar Formoso e, cerca de trezentos quilómetros e meia dúzia de horas depois, saía na paragem da aldeia, onde o avô a aguardava para mais uma temporada de pura felicidade. Foi assim durante anos, tantos que o primeiro Natal passado na cidade que a viu nascer, Odivelas, aconteceu há apenas cinco anos. “Eu sempre gostei muito disto e o meu avô sempre disse que um dia, nós tínhamos que vir para cá”, diz Marta, mencionando as conversas do avô com ela e o ainda namorado, Samuel Ribeiro. E, bastaram alguns anos para que as influentes palavras do avô Fites Pires Cameira produzissem efeito.
Os primeiros passos
A migração do casal de Odivelas para o Vale da Senhora da Póvoa teve início em 2017. “Começámos a pensar que a vida em Lisboa não era ‘vida’”, confessa Marta, adiantando que havia dias em que o Samuel saia de casa para trabalhar às seis na manhã e chegava muitas vezes às nove ou dez da noite. Lá, na cidade, Samuel trabalhava num ginásio e foi ali, em contexto laboral, que os dois se conheceram. Marta chegou a ser a “chefe” do então Personal Trainer. Pouco tempo depois, Marta deixou o ginásio para ingressar numa empresa do ramo alimentar, mas apesar do rumo profissional ter tomado outra direção, o objetivo do casal manteve-se intacto. “A ideia foi maturando. Fomos recolhendo informação e falando com algumas pessoas que nos podiam ajudar”, conta Marta. Frederico Lucas, do Programa Novos Povoadores, foi uma dessas pessoas. “O Frederico ajudou-nos muito e ainda hoje, quando temos uma dúvida, ele é a primeira pessoa a quem recorremos”, diz a agora responsável pela comunicação da Beir’aja – um nome que mistura a palavra Beira com a tradicional expressão de cumprimento e agradecimento da região, “Bem-haja!”,
No início, a ideia do casal era aproveitar os olivais dos avós de Marta e apostar na produção de azeite. Acabou por cair, para dar lugar ao alojamento, dada a possibilidade de reconverterem uma casa da família de Marta num turismo rural. Mas, também não foram por aí. “O Frederico fez-nos ver que só o alojamento não era suficiente, mas também que quem visita a região precisa de algo mais do que um sítio para dormir”, diz Marta.
Um dos exercícios do Programa Novos Povoadores é “casar” as valências e as competências dos candidatos a migrar com o negócio que pretendem criar e as oportunidades existentes no local para onde desejam criar novas raízes. E foi numa dessas conversas que a Beir’aja começou a ganhar forma. “Começamos a perceber melhor o que pretendíamos fazer e como podíamos encaixar as nossas características numa atividade que não só nos proporcionasse rendimento como contribuísse para a dinamização da região”, explica Samuel. Marta tinha, entretanto, ganho experiência na área da gestão. Depois de sair do ginásio ingressou na Gleba, uma padaria lisboeta de pão premium, e o Personal Trainer tinha o gosto e o perfil adequado para atividades ao ar livre.
O desafio de ser empresário
Em 2019, Marta e Samuel tomam duas decisões importantes. A primeira foi a formalização da união entre ambos. Casaram, e na igreja do Vale da Senhora da Póvoa, o que contribuiu ainda mais para a ligação de ambos à aldeia e à comunidade. “Definimos que, no final de 2019, início de 2020, iríamos mudar para cá, independentemente do que estivéssemos a fazer. Era o nosso objetivo de vida”, diz Marta. Porém, algures do outro lado do mundo, um morcego – dizem – despoletava um contexto que iria condicionar o mundo. E, em Março de 2020, já com Samuel livre de compromissos profissionais, o confinamento troca-lhes as voltas. Bem, mais ou menos. Primeiro ficaram presos no apartamento em Odivelas, mas assim que o confinamento foi levantado, em Junho, Marta, que entretanto tinha mudado de emprego, teve a possibilidade de trabalhar à distância, o que lhes abriu uma janela de oportunidade para rumar à Beira. Começava um novo desafio: fundar uma empresa, sem ter experiência de empresário e logo no setor mais afetado pelo contexto pandémico. A resposta? Foi um misto de arrojo e criatividade.
Umas das questões que se colocou a Samuel foi a de criar o negócio em modo de Empresário em Nome Individual ou fundar uma empresa. “Apostei tudo”, diz Samuel, a rir. Ambas opções têm prós e contras. Criar uma empresa tem mais custos, mas torna-se mais fácil aceder a programas de apoio à criação do próprio emprego. E foi este o caminho seguido. “Fizemos uma candidatura ao programa +CO3SO e conseguimos a aprovação”, conta. Apesar de ter de suportar Taxa Social Única sobre os postos de trabalho criados, este programa proporciona um apoio até três anos, o que representa um importante “balão de oxigénio” para quem está a começar do zero e num contexto adverso para a atividade.
“Esta região ainda é vista como um local de passagem,
e nós queremos mudar essa ideia com a Beir’aja”, defende Marta.
Prontos para a retoma
Quando a Beir’aja nasce, Samuel e Marta tinham noção das dificuldades que iriam enfrentar nos meses seguintes. O fôlego conseguido pelo setor no verão esmorecia e a tendência crescente do número de casos de COVID 19 fazia antever um novo desafio. “Tivemos que nos adaptar”, diz Samuel. Face à ausência de turistas, a Beir’aja virou-se para o mercado local e para o segmento do “bem-estar” através dos canais online. Funcionou, “mas não foi suficiente”, adianta Samuel, revelando que teve que voltar a vestir o equipamento de Personal Trainer num ginásio local para conseguir alguma estabilidade, enquanto Marta manteve-se em teletrabalho – agora numa empresa algarvia de conservas.
Apesar de pejorativa, a lentidão do arranque da atividade da Beir’aja tem permitido ao casal cimentar o conhecimento do negócio e aperfeiçoá-lo para quando a retoma chegar. “Temos aproveitado para conhecer melhor o território, criar parcerias e estudar novas oportunidades”, diz Samuel. Embora seja uma região rica em património histórico, cultural e natural, ainda há muito por explorar e melhorar ao nível da oferta turística. Samuel aponta, por exemplo, a fraca aposta no património mineiro da região, e há autênticas relíquias naturais que é preciso dar a conhecer, como a Quinta da Baságueda, uma propriedade privada em plena Serra da Malcata, onde se está a desenvolver um projeto de preservação do ecossistema que, segundo o casal, “tem que ser dado a conhecer”. “Esta região ainda é vista como um local de passagem, e nós queremos mudar essa ideia com a Beir’aja”, defende Marta.
Ao mesmo tempo, os jovens têm apostado também em trabalhar um dos fatores mais relevantes no sucesso de uma migração de novos povoadores: a integração na comunidade local. “O facto de a Marta ter raízes aqui e do avô Fites Cameira ter sido uma pessoa conhecida, tem ajudado muito, sobretudo quando nos apresentamos a potenciais parceiros”, explica Samuel. “Ser conhecida e conhecer a região ajuda muito”, confirma Marta.
Feito o “trabalho de campo”, os fundadores da Beir’aja entendem estar preparados para agarrar a retoma do setor, assim que ela chegar. Além de experiências sazonais como a olivicultura, viticultura e apicultura, atividades em que os visitantes podem participar na colheita, produção e prova dos produtos originários da região, a empresa tem já uma oferta bem composta de atividades ao ar livre e de bem-estar. Sobre o que os espera no verão de 2021, ainda existem algumas dúvidas, mas para o próximo ano, a ambição é grande. “Queremos ter uma atividade por dia no verão de 2022”, diz Samuel. Mas, seja qual for o ano, Marta e Samuel estarão sempre prontos para receber quem visitar a região com a simpatia que os caracteriza e, claro, com um grande “Beir’aja!”.